segunda-feira, 25 de abril de 2011

Da potência humana: o direito que ultrapassa o próprio direito

Como um genuíno produto da atividade humana em sociedade, seria inevitável que o direito se apresentasse como instância problemática, multifacetada e ubíqua. Na atual quadra histórica, estas características se mostram ainda mais dramáticas devido aos fenômenos da complexificação das relações sociais – aumento das velocidades e das quantidades, bem como a redução dos espaços e distâncias advindos de avanços tecnológicos e da globalização.
É neste contexto que podemos pensar o direito, suas funções, seus limites e possibilidades.
Quanto Hans Kelsen, em sua Teoria Geral da Norma foi levado a admitir o caráter fictício da norma fundamental, já restou claro que o positivismo havia sofrido sérios abalos em sua estrutura teórica uma vez que não era mais possível enxergar o fenômeno jurídico somente a partir da perspectiva “imunizada” de conteúdos valorativos. Ao propor tal revisão de sua própria teoria, o A. já estava indicando novas possibilidades para o próprio direito.
Como cediço, a mudança conceitual acarreta a mudança do próprio conhecimento. Assim, ao se ver transformado a partir de suas próprias potências, é possível pensar que para realizar seu mais freqüente ideal, ou seja, a justiça, o direito se aproxima da arte como atividade criadora de novas materialidades sociais. Nesse sentido, afirma Tércio Sampaio Ferraz Júnior que “onde não há arte, a vida s afunda na mesmice do cotidiano e onde não há justiça, a existência perde significado”. O que se quer significar é que embora o ideal seja, por sua própria definição, o inalcançável, é ele quem dá sentido à existência e à condição humanas.
Sabemos que as promessas do direito e da democracia estão longe de serem alcançadas no plano da vida moral e social, bem como não se atingirá uma era de perfeição quanto à convivência pacífica e distribuição de riquezas de modo a satisfazer a todos os interesses individuais. Isso, no entanto, não invalida os esforços e conquistas de direitos e garantias, que embora de equilíbrio frágil, são capazes de constituir uma vida mais digna. Obviamente que não se pensa aqui num acabamento ingênuo de uma absoluta felicidade geral, mas nos importantes processos de transformação que o próprio direito patrocina, através de seus conteúdos valorativos que ganham concretude a partir da ação humana.
É neste sentido que Aristóteles já pugnava que a “ética, assim, não tem por objetivo saber o que é a virtude na sua essência” (…) “mas é com o fito de nos tornar virtuosos que efetuamos nosso estudo, pois de outro modo ele não serviria para nada”. Veja-se que o que importa para o estagirita é o processo da busca da virtuosidade, a ação que conduz a tal finalidade e não o conhecimento metafísico sem vinculação com a materialidade do mundo fenomênico.
Não é diferente com o direito, que em nossos dias, apesar de estar expresso em leis escritas de nada valem sem o complemento das condutas na vida social do ser humano. Disso resulta que as potencialidades humanas, sua criatividade, sua problematicidade enquanto ser no mundo, que pensa e idealiza, portanto sonha, mas que ao mesmo tempo sabe de sua finitude e de sua incompletude, só ganha sentido nos ideais do justo e do belo.
Novamente não se trata aqui de uma visão telúrica de um mundo fácil e repleto de bons civilizados, para parodiar Rousseau, mas trata-se da potência criativa que nos diferencia dos demais seres que habitam o planeta, que para além do bem e do mal nos constitui como humanos e nos possibilitar pensar mecanismos como o direito que dão-nos a abertura para o mundo da cultura onde as escolhas estão a nosso dispor, desde que saibamos arcar com todas as conseqüências inclusive porque somos responsáveis pela nossa própria sobrevivência, e também das gerações vindouras.
O direito pode oprimir, mas pode também emancipar. Mas quem nos garante? Parece que o próprio Kelsen responde em seus ensaios O que é justiça? quando afirma que somente a tolerância para com a diferença do outro é que seria capaz de nos manter na condição de humanos e possibilitar atingir estes ideais do justo e do belo.



Publicado na 29 edição do Jornal Estado de Direito
Belmiro Jorge Patto

FONTE: JORNAL ESTADO DE DIREITO


Nenhum comentário:

Postar um comentário